Não há tecnologia no mundo, para mim, que substitua o encantamento de uma carta. Naquele pedaço de papel em que compartilhamos uma parte de nós, há nuances impregnadas que aparato digital nenhum é capaz de alcançar. A letra, a caneta e o papel escolhidos, a assinatura, a data… Tanta coisa cabe numa carta, que fica até difícil explicar em palavras a magia que elas têm.
Escrever e receber cartas me passa uma sensação de intimidade e aproximação. É minha forma de resistência de fugir dos instantes acelerados que nos cercam e que fazem parecer a única maneira possível de existir no mundo. Estou cansada de ter pressa.
Enquanto escrevo esse texto, por exemplo, estou devendo uma resposta à carta que recebi de Paula Maria1, que toca um projeto incrível chamado Te escrevo cartas. Acredito que o momento de escrever uma carta é meio sagrado, e não quero fazer de qualquer jeito. E, nessa de esperar o momento ideal, às vezes demoro de responder. Mas prefiro assim. Não quero transformar o ato de escrever carta em apenas mais uma tarefa a cumprir.
E é por gostar tanto desse modo de comunicação que sou uma ferrenha defensora dos romances epistolares e de compilados de cartas reais. Na primeira história mais longa que escrevi (e que, provavelmente, não verá a luz do dia), há algumas trocas de cartas entre os protagonistas, e foi uma experiência muito legal pensar em como imprimir o jeito de ser daqueles personagens nas correspondências que trocavam entre si.
Eu ainda pretendo um dia retomar essa ideia e desenvolver uma história em que cartas tenham um papel primordial na narrativa. Mas, até lá, vou curtindo os livros já lançados.
Cartas e o registro da intimidade
Já ficou mais do que claro que eu amo cartas. Mas, realidade ou ficção, ler livros em forma de cartas me dá a sensação de estar invadindo o espaço de alguém ao acessar seus pensamentos mais íntimos sem os filtros de um narrador.
Um adolescente escreve cartas para um destinatário desconhecido compartilhando sua jornada de amadurecimento. Um jovem reflete sobre a relação com a mãe em cartas que nunca serão lidas por ela. Uma mulher repassa a vida da família tentando entender onde ela e o marido podem ter errado para que um dos filhos deles cometesse um crime cruel. Um jovem desabafa sobre a relação abusiva que teve com o ex-namorado depois de descobrir que ele está no reality show mais famoso do país.
São vidas descortinadas a cada página, a cada carta. Acho que é isso que me atrai nesse formato de livro: é tudo muito visceral e, quando bem escrito, me envolve de forma tão potente, que eu não consigo parar de ler até chegar na última carta.
É claro que, na ficção, cada carta vai ser pensada com um propósito narrativo, terá um “significado oculto”, vai passar uma mensagem. Mas, se pensarmos nas cartas reais — especialmente em uma época pré-internet —, muitas vezes essas correspondências serão triviais e, à primeira vista, podem parecer desimportantes. Mas nossa vida também é feita desses pequenos fragmentos do cotidiano. Muitas vezes, são essas as melhores oportunidades de conhecer alguém mais a fundo.
Na introdução do livro “Aí vai meu coração”, Anna Luisa Martins conta de quando, ainda criança, descobriu nas coisas do pai Luís Martins cartas que ele recebeu da mãe dela, Anna Maria Martins, e de Tarsila do Amaral. Luís foi o último companheiro de Tarsila, e Anna Luisa, mais tarde, entendeu a importância dessas correspondências por mostrar uma parte pouco conhecida da vida de uma das pintoras mais importantes do Brasil.
A princípio, a mãe dela foi contra à publicação, porque as cartas revelavam momentos delicados e íntimos (Luís largou Tarsila para ficar com Anna Maria, que era prima da pintora). Porém, depois entendeu a importância daquele registro histórico e decidiu autorizar que parte de sua intimidade fosse compartilhada com o público.
Para além desse registro histórico, o mais interessante das cartas (especialmente as de Tarsila) é que, em sua maioria, elas não trazem grandes revelações, mas nos dão acesso a pequenos fragmentos do cotidiano, desde burocracias ou encontros com amigos. E aí, no meio dessa trivialidade, há preciosidades, como um bilhete de Vinícius de Moraes que ela enviou para Luís junto com a carta dela.
É muito interessante pensar como essas pequenas coisas ganham dimensão com o tempo, especialmente quando se trata de uma pessoa pública. Temos curiosidade pela vida das pessoas — vide o tanto que cada post em rede social de uma celebridade é comentado e compartilhado. Mas, no ambiente virtual, muitas vezes os passos são calculados. Eu prefiro a espontaneidade de uma carta enviada sem pretensão.
Cartas e o tempo
“Levamos a arte de escrever cartas tão literalmente, não é? Lacres de foca à parte. Cartas como viagem no tempo, cartas que viajam no tempo. Significados ocultos.”
(Amar El-Mohtar e Max Gladstone em “É assim que se perde a guerra do tempo”)
Por falar em tempo, cartas me parecem ótimos documentos para sobreviver aos anos e contar, para uma geração vindoura, pensamentos de quem veio antes. É claro que, por serem tão pessoais, não serão capazes de dar conta de todo um contexto histórico que remetente e destinatário estão inseridos. Se forem cartas de pessoas “comuns”, talvez esse aspecto apareça muito pouco. Mas acredito na história contada a partir dos detalhes, e não apenas por meio de grandes acontecimentos.
Quando Amar El-Mohtar e Max Gladstone fazem as protagonistas trocarem cartas enquanto literalmente viajam pelo tempo e espaço em “É assim que se perde a guerra do tempo”, vejo materializada essa função das cartas. Mais do que isso: enquanto navegam pelo espaço-tempo e se correspondem, Red e Blue mudam, e essa mudança é perceptível pela correspondência que trocam entre si. O tom, a escolha das palavras, o tanto que decidem compartilhar de si vai mostrando o amadurecimento da relação das duas que, de inimigas em lados opostos de uma guerra que não sabemos por que acontece, descobrem muito em comum e se apaixonam.
A guerra não importa. A forma com que viajam no tempo nem é citada. A correspondência entre as duas é tão recheada delas mesmas que tais detalhes não têm razão de ser citados. O que eu queria saber, a cada página, era como as cartas mexeriam nelas internamente.
E se falamos em conhecer alguém ou uma época por meio de cartas, imaginamos que a maneira mais coerente de lê-las seja em ordem cronológica. Mas e se invertermos e começarmos pelo fim? O que mudaria em nossa percepção sobre a história que as cartas contam e sobre quem as escreve?
Essa possibilidade nunca tinha passado pela minha cabeça até ler “Aquele que é digno de ser amado”, de Abdellah Taïa. O livro é composto por quatro cartas que contam a história de Ahmed, um homem gay nascido no Marrocos e morando em Paris. Partindo de 2015 e chegando até 1990, comecei a leitura julgando as atitudes do protagonista, que escreve para a mãe morta há alguns anos. Porém, conforme temos acesso às cartas mais antigas, é possível perceber um outro cenário se formando. As peças só se encaixam completamente quando lemos a última carta, a primeira a ser escrita. Só entendemos Ahmed completamente depois de ter o panorama completo.
Acredito que as cartas serem organizadas da mais atual para a mais antiga traz uma carga de complexidade à história. Não é como se Ahmed fosse “absolvido” de um posicionamento questionável perante a vida e as relações, mas passamos a entendê-lo melhor ao saber de onde ele vem e o que passou enquanto gay no Marrocos e o apagamento de sua identidade e de suas raízes ao se mudar para Paris em busca de uma vida melhor.
Cartas e a conexão entre pessoas
Pensando as cartas como uma “roupa” ofertada por quem escreve, tem vezes que a conexão de quem as lê é tão grande, que é como se a vestimenta servisse de forma perfeita no corpo do destinatário. Despe-se de amarras para vestir o outro de identificação.
Imagine, então, que você é imigrante e encontra uma carta de um também imigrante contando sua própria história. Você se inspira e escreve uma carta também, que é achada por outra pessoa que continua a corrente. Tais cartas não são enviadas ao destinatário de origem, mas parecem chegar a quem é capaz de entendê-las.
Esse poder de conexão é o mote de “Correio noturno”, de Hoda Barakat. Assim como no belo “Sobre a terra somos belos por um instante”, de Ocean Vuong, o fato de as cartas não serem enviadas é um mero detalhe diante da grandiosidade da história que contam. A correspondência encontrou um destinatário, seja outro personagem, seja nós, leitores. Nenhuma palavra é desperdiçada.
Depois de discorrer por tantas linhas defendendo o quanto eu amo cartas, acho que nada mais justo do que eu escrever algumas para quem quiser recebê-las. Pegando o gancho de que os detalhes é que importam, quero escrever pequenas cartas contando algum fato cotidiano que me chamou a atenção — um exercício criativo que tem tudo a ver com o que falei na edição passada. Esse será o ponto de partida para (quem sabe) uma troca de correspondências mais longa.
Então, quem quiser receber, basta responder essa newsletter com seu endereço e aguardar a mágica acontecer! Se estiver lendo pelo app, é só escrever para carolvidal.escritora@gmail.com. Será uma honra dividir um pouco mais de mim com vocês.
Referências e inspirações
Várias correspondências (reais e fictícias) serviram de inspiração para esse texto. Aqui vão elas:
– Precisamos falar sobre o Kevin (Lionel Shriver, tradução de Vera Ribeiro)
– Sobre a terra somos belos por um instante (Ocean Vuong, tradução de Rogério W. Galindo)
– Aí vai meu coração: As cartas de Tarsila do Amaral e Anna Maria Martins para Luís Martins (Ana Luisa Martins)
– Correio noturno (Hoda Barakat, tradução de Safa Jubran)
– Querido ex (Juan Jullian)
– As vantagens de ser invisível (Stephen Chbosky, tradução de Ryta Vinagre)
– Aquele que é digno de ser amado (Abdellah Taïa, tradução de Paulo Werneck)
– É assim que se perde a guerra do tempo (Amar El-Mohtar e Max Gladstone, tradução de Natália Borges Polesso)
A newsletter Devaneios Criativos foi criada e escrita por mim, Carol Vidal, e agora conta com a colaboração de Rita Zerbinatti, professora de arte e apaixonada por livros como eu, na curadoria de imagens. Segue o texto que ela preparou sobre as obras escolhidas para esta edição:
Woman reading a letter
É impossível não prender a respiração por um segundo que seja ao observar essa imagem. Essa obra exerce um fascínio indescritível e fico presa nela, deixando a minha imaginação correr solta. Johannes Vermeer, grande pintor barroco, pintou “Woman reading a letter” em 1663, na distante Holanda. Mas cá estou, em 2024, completamente fascinada diante dessa imagem. A pintura, assim como as cartas, revela sua magia para quem se permite observar.
Na pintura, uma moça lê uma carta enquanto uma luz gelada invade a sala. Ela deveria estar muito ansiosa pela carta, pois nem sequer sentou. Quando observamos seu rosto, é inevitável pensar na surpresa, no espanto, no coração acelerado, na ansiedade por ter em mãos esse minúsculo papel que contém um mundo inteiro. Também é possível captar um pouco de melancolia, o azul que predomina a imagem não nos deixa imaginar um conteúdo feliz nessa carta.
Eu poderia ficar horas congelada nesse momento de intimidade com essa moça tão distante, tão enterrada no passado e que, no entanto, me compreende. Fico com uma certa expectativa de que ela irá olhar pra mim a qualquer momento, sufocada, atropelando palavras para me contar sobre o conteúdo da carta. Mas nada acontece, ela estará para sempre presa nesse momento e parte de mim ficará com ela.
Kitchen Table Series
Quando penso em cartas, penso em fotografias. Uma definição romântica é que a fotografia é escrita com luz, e simplesmente não consigo resistir, preciso parar para ler qualquer fotografia que caia nas minhas mãos. Quando vejo uma foto, é como se alguém tivesse escrito uma carta e deixado aberta sobre a mesa, me sinto pega em uma intimidade única, assim como me sinto ao ler uma carta, não importa quem a escreveu. Existe uma magia nas cartas e existe uma magia nas fotografias.
Assim como escrever cartas, percebo que tirar fotos é também uma atitude de muita intimidade, é deixar pequenos rastros de si, pequenos e singelos fragmentos brilhantes e lindos para que um outro olhar possa te adentrar. A partir da nossa escrita e das nossas fotos, outras pessoas entendem melhor como vemos o mundo.
Com isso, apresento a fotógrafa Carrie Mae Weems, com a série de fotografias mais íntima que já pude ver: The Kitchen Table (1990). É uma série de fotografias que acontecem na mesa da jantar da artista, mostrando-nos momentos de profunda intimidade, beleza e incômodo. Os cômodos, os móveis, os objetos e o cotidiano têm muito para contar.
Carol do futuro/presente passando pra dizer que, enquanto edito o texto para enviar, já não devo mais uma carta a Paula. Pequenas vitórias do dia a dia!
Na minha igreja é comum tirarmos de 1 ano e meio a 2 anos para fazer trabalho missionário voluntário, e durante esse tempo a gente aacba se comunicando com a família e amigos por cartas e e-mails. Era muito interessante porque as novidades imediatas iam nos e-mails, mas de vez em quando eu gostava de mandar cartas físicas exatamente por essa qualidade de "túnel do tempo". Palavras como "hoje" e "amanhã" no e-mail costumavam ser mesmo hoje e amanhã, mas nas cartas elas perdiam todo o significado. Para o meu amigo que serviu no Japão eu sabia que a carta ia demorar tanto para chegar que o texto todo foi uma reflexão sobre "você deve estar com saudade de falar português, né?". Um senhorzinho que ensinei na missão imprimia materiais legais e me mandava junto com as cartas dele, e agora eu tenho umas 20 receitas de cookies e brownies para testar. Em algum lugar eu acho que tenho uma carta para mim mesma, para ser lida antes do meu casamento. E, claro, a carta devastadora que não era para mim, mas que eu acabei recebendo: "P.S.: a Ana não sabe da cirurgia". Que cirurgia, mãe??? Infelizmente já faz uns anos que devo uma resposta para aúltima carta que recebi, e tenho vergonha de retomar o contato dizendo "eu fui adiando e esqueci", mas eu sinto falta de ter cartas na minha vida de novo.
Tô no aguardo da minha carta e adorei essa edição. 😍